Um encontro com Eugenio Barba e João Brites
Luiz Carlos Garrocho[1]
Encontros possíveis
Convidado a mediar o
encontro entre Eugenio Barba (Odin Teatret/Dinarmarca) e João Brites (O
Bando/Portugal), deparei-me com uma enorme dificuldade: como fazer uma ponte entre
as trajetórias singulares desses dois artistas/mestres? Entre dois mundos, o
que se passa? Mais do que isso, eu me colocava em questão: pois, ao perguntar
pelo outro, eu me perguntava pelo percurso que me conduzia até ali, até aquela
mesa em que se daria a conversa diante do público formado por artistas,
estudantes, pesquisadores e outros.
O que vem a seguir não é
um trabalho exaustivo. São anotações e algumas inferências que me arrisco a
fazer em torno dos possíveis do encontro Eugenio Barba/João Brites, nos Encontros
Possíveis de dezembro de 2014. Tais observações permanecem injustas, se
consideramos que elas jamais poderiam retratar as trajetórias desses artistas
da cena. São além disso imprecisas, visto as limitações dessa tarefa a que me
proponho. No entanto, se forem vistas antes como tentativas de capturar os
vetores e as linhas de força de uma batalha, talvez não saiam tão mal assim. Sim,
uma narrativa, precária de certo, que eu inventei para mim mesmo. Que me foi proporcionada pelos movimentos
deles e que, por isso, espero não ser desproposita.
Não conhecia o trabalho
de João Brites. Antes de encontra-lo, fiz pesquisas na internet e li durante a viagem
até Cuiabá partes da tese de doutorado do artista e pesquisador mineiro Juarez
Diaz. Ao mesmo tempo em que me dava conta de minha ignorância – e de muitos
nós, brasileiros – sobre João Brites e o grupo português O Bando – podia notar
como eles já estavam, cada vez mais, presentes e infiltrados entre os grupos
daqui. Logo que me encontrei com Brites, fiz uma entrevista rápida, a fim de me
situar nas questões que atravessam sua prática artística.
Com Eugenio Barba, ocorria
algo diverso. Meu percurso como artista, pesquisador e professor de teatro é
sulcado pelas leituras de muitos de seus livros, pelas vezes em que eu pude
ouvir Barba falar, no espetáculo que assisti etc. Reverberava em mim, ainda, o
momento em que li Canoa de Papel no
início dos anos de 1990. Em que numa turma da qual fazia parte Tatiana Horevicht,
procuramos juntos decifrar nossa prática e nossos caminhos nessa arte através
desse livro. Ao lado de sua companheira e artista, Julia Varley, lá estava ele.
Dois ciganos no aeroporto de Brasília. Teria alguns dias pela frente, mas não
sabia como aportar esse caudal de ensinamentos. Como entrar essas águas
cristalinas e ao mesmo tempo turvas para mim, que é uma vida em obra, uma obra
em vida? Pois eu me encontrava diante de mim mesmo: um acerto de contas com
minha própria trajetória.
Não poderia, então,
começar com uma entrevista formal. Eu estaria me reportando apenas intelectualmente
a esse caudal. Decidi, então, espreitar o acontecimento do qual a pessoa é
condutor, barco e rio.
Entre dois mundos, o que se passa?
Estava ali, portanto,
diante de dois artistas/pensadores do seu ofício. Não cabia reduzi-los a um
denominador comum. Não me interessei, assim, a procurar semelhanças e/ou
dessemelhanças. Processos de arte e artistas não se comparam, somente
mercadorias. Antes de tudo, são singularidades em movimento. Vejo que cada um
deles chega a esse encontro na Chapada, cada um a seu modo, percorrendo uma
longa caminhada que segue adiante. Mais do que bagagens, eles trazem em si as experiências
que os acometeram: forças que são maiores do que suas próprias pessoas. Que estão
no gerúndio, proliferando enquanto caminham. Arrisco-me a falar de algumas
dessas forças.
Entre Eugenio e João
encontrei a linha que, segundo seus próprios relatos, entreteceu com mais
linhas outras as trajetórias de vida e arte de cada um deles: eles se percebiam
como imigrantes. O que proporcionou a eles uma posição estratégica no
território do teatro profissional do ocidente.
Em Barba, isso aparece sobretudo na escuta do
outro – nessa antropologia do corpo, dos sinais que poderiam ressaltar uma
amizade ou inimizade, uma hospitalidade ou hostilidade[1].
João vinha de uma estadia em Bruxelas, na Bélgica, onde estudou como artista
visual. Quando volta à sua terra natal, já não se reconhece nela e, ali, começa
a sua jornada com o teatro. Trazia, de um lado, as influências do movimento de
Maio de 1968, deparando-se por outro lado com o 25 de Abril de 1970, “onde tudo
parecia possível”. Entre uma coisa e outra, a força da cultura popular.
Em Barba a terra natal
nunca restituída será essa ilha flutuante, em trocas com outras ilhas
flutuantes, num mundo em que as cercas e as fronteiras são erguidas, desfeitas
e refeitas a toda hora. Esse sentimento parece ter sido importante para Eugenio
Barba traçar a sua territorialidade
teatral:
Quando você
chega a uma cidade, você não consegue um lugar no centro – você procura o seu
lugar na periferia. Os grandes movimentos buscam os lugares longe das capitais.
Retira-te para o mais longe da cidade[2]
.
Outra linha de força se
mostra no fato de ambos terem afrontado o próprio tempo no desembarque que
fizeram no continente do teatro. Não se pode esquecer, como disse Barba, que “o
teatro europeu dos anos de 1950 era uma empresa de diversão do
espectador”. Com as outras artes não era
muito diferente. O que os anos de 1960 trouxeram, através dos procedimentos da
neo-vanguarda, foi antes de tudo a efetuação de uma revolta dos corpos e dos
sentidos contra essa máquina mercante. Sem esquecer das formas de lutas contra
a opressão dos governos, principalmente na América Latina.
Portanto, de um lado eles
apontam o território do teatro no bojo das revoltas. No entanto, de outro lado, como muitos outros
artistas, eles contra-efetuaram o acontecimento[3],
lançando mão, cada um a seu modo, do rigor – este outro nome da crueldade. Não
para que as forças de ruptura fossem domesticadas. Mas para que não vissem
capturadas no estado de torpor do espontaneísmo já vigente e difuso. Para que a
rebeldia, afinal, fosse o enfrentamento de si, e não a melancolia que, um dia,
caberia à margem uma identidade presumida. Somente assim as potências ainda não
efetuadas poderiam se atualizar sem se extinguirem[4].
Cada um deles fez sua
própria arma de contra-efetuação na
imanência dos próprios movimentos. João Brites, através das artes visuais, que
se mostravam contextuais e performativas, fazendo proliferar os híbridos e os
mediadores. Pois era na cena que se havia de buscar essas forças: no aqui e
agora dos corpos e dos lugares, do convívio e das trocas, do coletivo que se
instaura a cada momento, da duração que faz compartilhar. Além disso, João
encontra na cultura popular das pequenas comunidades portuguesas esse porvir.
Em termos do ofício, a plasticidade que buscava – e que vai marcar sua visada
como encenador – tem por desejo o de ver no ator um artista que “está à procura
de uma linguagem”. Que lhe deve “servir como instrumento de liberdade”, mas
desse modo contra-efetuado, numa via
em que devemos ter “a coragem de nos confrontarmos”.
Eugenio Barba localiza a
imanência numa tradição de rupturas: dos mestres-diretores, dos atores e
atrizes, enfim, no próprio ofício teatral. O coletivo também é, em Barba uma
força deflagradora das potências da cena. Mais do que isso, ele se instala ao
mesmo tempo no enclave territorial – lugar de experimentação - e nas redes de
trocas e compartilhamentos. Surge, assim, no bojo da neo-vanguarda, o Terceiro
Teatro.
Barba lembrou, no
encontro, alguns dos aspectos desse teatro: a ruptura com o texto teatral
(pode-se dizer, em que a cena deixa de ser deduzida da dramaturgia do texto
dramático para ser uma dramaturgia da cena), a necessidade de fazer teatro que
não fosse somente nos edifícios teatrais e, o que deve ser frisado, o fato de
não se tratar “somente de um conhecimento técnico, mas de uma coerência de
vida”. Não podemos esquecer, contudo, que em Barba esse ofício do teatro não estará contido exclusivamente no teatro
ocidental e profissional, mas que se verá também, de igual direito, nas culturas
anônimas, no teatro oriental e nas formações rituais. Porém, sua especificidade
igualmente não seria negada.
Pois é desse lado, por
essas pesquisas em outras territorialidades (o teatro oriental, por exemplo) que
Eugenio Barba coloca em evidência, ao lado da dramaturgia da cena, a
dramaturgia do ator, o que será para os artistas latino-americanos, de
importância ímpar. Não basta dizer que se trata de um mestre/artista que se
interessou pela nossa língua e cultura. Mais do isso, o ator/atriz deixam de
ser os corpos que interpretam e representam, segundo linguagens dramáticas ou
épicas, um universo dado. Eles se tornam compositores. Mais ainda: a técnica
compositiva, digamos assim, torna-se passível de ser buscada na imanência das
próprias culturas. Estou apontando, então, para um possível canibalismo nosso
da Antropologia Teatral.
Uma anotação: isso não
seria possível se esse Terceiro Teatro não re-inventasse e colocasse
obstinadamente em curso um terceiro elemento: se os teatros hegemônicos só
conheciam os espaços/tempos do ensaio e do espetáculo, surge o terceiro
espaço/tempo, que é o do treinamento. Sem esquecer que este se abre nas redes
de compartilhamento.
João Brites: Do outro lado
Entrar em contato com
João Brites é tomar pé num curso em que dramaturgia, cenografia,
territorialidade e convívio encontram-se, de algum modo e variavelmente em cada
encenação, imbricados. Posso entender que as estratégias relativas ao ofício do
ator fazem parte dessas relações. De fato, em sua fala nos Encontros Possíveis,
João Brites se referiu às estratégias para trilhar a criação com o ator. Para
lembrar somente um dos exemplos por ele citados, encontra-se a necessidade de
equilibrar a “exuberância corporal” que o processo de criação busca acionar,
com a “contenção verbal”. Entretanto, se não estou equivocado, pode-se dizer
que esse aporte no trabalho do ator se insere no quadro mais amplo de um
artista que se volta primordialmente para a encenação. Do outro lado é, então,
como mostra Brites (2011), o lugar do espectador[1].
Três elementos podem ser
vistos nesse trajeto de Brites: a noção do cenário
como um penetrável, o trabalho com a literatura (que foi o foco da tese de
Juarez Dias) e o trabalho com o ator. Essas relações me parecem, então,
relacionadas entre si, como se pode observar nas falas de Brites nos Encontros
Possíveis.
Entendo, além disso, que
os traços dos procedimentos contextuais e performativos da neo-vanguarda,
mostram-se presentes nos percursos de Brites. Uma arte situada, a produção da
espacialidade, os elementos da arte da
instalação, do teatro do ambiente (environmental
theatre) etc. Que se evidenciam, aliás, no belo livro que é Do outro Lado (Quadrienal de Praga,
2011)[2],
com textos de vários autores/autoras, incluindo Brites, sem contar com as
também belas imagens das encenações. Trata-se, no caso, de três intervenções
realizadas em três lugares de Praga, de que trata o livro.
O espaço cênico, segundo
a fala de Brites nos Encontros Possíveis, interfere diretamente na relação com
o ator – e com o espectador. De modo
que, segundo Bárbara Coutinho, se pode falar numa dramaturgia que se realiza
como dramatografia - (85):
Processo
intrinsecamente pictórico, escultórico e arquitetônico onde são colocadas
questões comuns a todas essas expressões, como a construção do espaço, a
representação do tempo ou o lugar do observador” (2011, p. 85).
Nessa direção, as máquinas cênicas merecem um destaque
nessa trajetória de Brites. A máquina cênica de Brites foi objeto de pesquisa
de uma encenação da Cia Pessoal de Teatro, de Cuiabá, com direção de Amauri
Tangará e atuação de Juliana Capilé e Tatiana Horevicht, apresentada nos
Encontros[3].
Num dos exemplos de João Brites, a máquina cênica
instaura uma duração, interage com o ator/atriz e modifica a percepção do
espectador. Como diz Nuno Nabais (Do
outro lado, 2011), os atores/atrizes, “as figuras estão sempre em
desequilíbrio, ou retardadas nos tempos e lugares” (p. 51).
Numa parte da exposição de Brites, Barba lhe
pergunta: esse é um espaço que une ou separa? Brites então enfatiza mais uma
vez a interação com o ator/atriz, numa relação real (no tempo e no espaço).
O caminho do
raio
Essa colocação de Barba sobre o espaço – que me
toca diretamente por ser parte das minhas pesquisas – me levou então a
procurá-lo logo após a fala de Brites. Nesse momento se deu o acontecimento que
espreitava sem saber o que e como viria.
Então, o que vem a ser esse espaço que une ou
separa?
Difícil ou quase impossível descrever a energia
densa, num curtíssimo intervalo de tempo – o caminho veloz e tortuoso do raio –
que foi esse encontro com Barba. Devo dizer que o diálgo me trouxe ter uma nova
introvisão sobre os processos de criação que estava desenvolvendo na minha tese
de doutorado sobre o lugar e o convívio, nas performances urbanas. Somente esse
tema merece um desdobramento posterior.
Foi um diálogo em que, para mim, se deu o que Barba
chama de pensamento em ato, quando
fala dos estudos sobre partitura e atuação. Ele me apontava um gato deitado
sobre um banco, enquanto eu me posicionava agachado ao seu lado. Ao que ele me
respondia com novas perguntas e provocações. Pensamento em ação.
Por fim, tive a oportunidade de mostrar a ele o pequeno
trecho em vídeo do que estáva desenvolvendo, com meus parceiros e parceiras, em
composições improvisadas, que têm por base a linguagem de um teatro corporal[1].
Num átimo ele me diz que estava excessivamente abstrato, que tornava-se difícil
para o espectador entrar ali. Fez também outras observações e sugestões. O
importante, contudo, era perceber que, nesse caminho em que tive acesso aos
ensinamentos de Barba somente pelos livros e demonstrações em festivais, eu
estava sendo, pela primeria vez, tendo um retorno direto e pessoal. Agora, era
a vez de me voltar às pesquisas e retomar os caminhos à luz desse encontro.
O mestre zen Igaraschi Tokuda conta a história de
um praticante, na China antiga, a quem foi instruído que entrasse em contato
com um mestre que se encontrava escondido, vivendo como barqueiro numa região
distante. Era um período díficil para o zen na China, que estava sendo
perseguido pelos imperadores taoístas. Depois de muitas andanças, ele se dá com
o mestre. Nesse momento, o mestre o joga dentro dágua, afogando-o diversas
vezes. Depois de muito lutar, o discípulo consegue se salvar, ao que o mestre
lhe dá as costa e vai embora. Percebendo que o praticante encontrava-se
atônito, sem saber direito o que lhe havia acontecido, o mestre-barqueiro vira
para trás e diz: - Já lhe transmiti tudo. E segue em frente.
Depois do encontro com Barba fica a sensação de
plenitude e vazio. De perguntas que não paravam de se multiplicar. Da
necessidade de logo retomar os estudos de composição. Em que você se pergunta:
nesse tempo todo, será que eu aproveitei bem a presença e o tempo em que tive
ao lado de uma caudal de experiências e ensinamentos? Minha estratégia foi a
melhor? Não teria sido importante ter, agora, uma entrevista? Mas, como na
nossa arte, o que foi feito está feito. Por isso, talvez, a importância de
atuar sobre o momento-presente, enquanto prenhe de futuro, num exercício que ao
mesmo tempo busca contra-efetuar o acontecimento. Ou seja, como disse antes,
restituir sua potência não atualizada. Um passado que não se tornou presente[2].
Uma tentativa
de síntese
Na mediação que fiz nos Encontros Possívies,
arrisquei-me a pensar uma síntese sobre
a Antropologia Teatral. Não porque era
preciso apresentar a ideia de uma prática/pensamento, pois muitas pessoas ali
presentes liam Barba, quando não já haviam estabelecido algum contato direto
com ele, com Júlia Varley e outros companheiros/companheiras de jornada. Mas
primordialmente porque eu deveria realizar em mim mesmo primeiro, e depois
apresentar aos os outros, o sentido que a Antropologia Teatral vem traçando no
meu caminho. Tarefa arriscada, sim, pois você pode apenas eleger um traço que
se torna uma intelectualiação abstrata. O que negaria tudo o que esse caminho
pode proporcionar.
Falei, então, que a Antropologia Teatral pode ser
vista, ao modo de uma síntese, como uma arte
da recusa e da entrega.
Não pretendo com isso trazer nada de novo, original
e exclusivo sobre essa prática de estudo, sobre esse aporte da cena e do ofício
do ator/atriz. Procuro antes fazer algumas conexões que me parecem importantes,
porque permitem realizar passagens (entre práticas artísticas e filosofia, entre arte e tecnologias da
existência, entre linguagens etc. Também porque, a cada momento, sínteses
provisórias – mesmo que precárias - se fazem absolutamente necessárias. Intuo
que nós estamos de posse de um conhecimento – que nos atravessa e nos coloca em
devir outro – quando podemos dizer de algo como se fosse uma configuração
mínima. Mas que, como dizem os surrealistas, tenha a força de arrombar uma
porta com mil imagens.
Então, me arrisco a uma síntese.
Lembrei-me de O
Sétimo Selo, de Bergman. Filme em que um cavaleiro medieval joga xadrez com
a morte, numa paisagem humana devastada pela peste negra, em que saltimbancos
contrastam esse plano com a alegria sensual de sua arte e uma mulher jovem é
queimada viva como bruxa. Num dos trechos do filme, o ator saltimbanco entra
numa taverna. Quando os homens que lá estão, bêbados e tomados por uma fuga
rude daquele mundo, logo o percebem tratar-se de um ator e então exigem que ele
suba na mesa e dance imitando um urso. Enquanto isso, riem muito diante daquele
corpo contrito, atirando algumas moedas.
Não deixa de ser um quadro interessante para pensar
a cena contemporânea – seja em que grau for. Como se essa Idade Média fosse um
estado permanente. Até porque me lembra o que diz Barba em Queimar a casa – as origens de um diretor[1]:
aquele que escreve um manual do ofício do ator na Idade Média, que posso ver
como esse cavaleiro andante, a jogar com a morte.
A arte da
recusa e da entrega é um paradoxo operativo. Que se desprende dos
ensinamentos de Barba como um meio de contra-efetuar
o acontecimento. Nesse sentido, o bios
cênico[2]
transforma-se numa biopolítica
apropriação que Gilles Deleuze faz de Foucault. Poderia ser visto, então, como
uma arte da resistência. Uma crueldade que não se deixa dissipar no ato, mas
que o rouba para ir adiante. Entendo que nós buscamos uma técnica – um recurso
– de aprendizagem. Diria, contudo, que os ensinamento de Barba vão muito além
de uma técnica.
Já quase me despedindo dos Encontros Possíveis,
pergunto a Eugenio Barba se ele havia reparado em duas expressões que apareciam
nas falas de João Brites: “a montante” e a “juzante”. Que não aparecem quase
nunca na coloquialidae do português falado no Brasil. Pois “a montante” é a
força que se acumula na cabeceira do rio. Você não a vê, mas quando ela desce
ela se torna “a juzante”. A recusa, como possível contra-efetuação do
acontecimento, é o que pode restituir potência (“a montante”) ao que se
atualiza (“a juzante”).
À
guisa de não concluir
Participar dos Encontros Possíveis, mediando o
encontro entre esses dois artistas, Eugenio Barba e João Brites, foi uma
oportunidade sem igual. Pela singularidade de suas trajetórias, pelos olhares
que nos proporcionaram sobre a cena e o ofício do ator/atriz. Sobretudo, pelas
pergunta às quais nos fizeram lançars em nossas próprias trajetórias. Sem
esquecer, ainda, das mostras, compartilhamentos e apresentações que foram
realizadas.
Seguimos.
Referências
BARBA,
Eugenio. A canoa de papel: tratado de
Antropologia Teatral. Tradução de Patrícia Alves. São Paulo: Hucitec, 1994.
_____________. Queimar a casa: origens de um diretor.
Tradução de Patrícia de Mendonça. São Paulo: Perspectiva, 2010.
________; SAVARESE, Nicola. A arte secreta do ator: dicionário de
antropologia teatral. Tradução de Luís Otávio Burnier (supervisão). São
Paulo-Campinas: Hucitec-Campinas, 1995.
BRITES, João et al. Do Outro Lado. Publicação da Representação Oficial Portuguesa/Quadrienal
de Praga, 2011. Vários autores. Direção-Geral das Artes, Ministério da Cultura
de Portugal, maio de 2011.
DELEUZE,
Gilles. Lógica do sentido. Tradução de Luiz
Roberto Salinas Fortes. São Paulo: Perspectiva, 1974.
MENCARELLI,
Fernando Antonio. Performance, trabalho sobre si e canções rituais brasileiras.
In: CARREIRA, André Luiz Antunes N.; QUEIROZ, Fernando Antonio Pinheiro de
VILLAR de; GRAMMONT; RAVETTI, Graciela; ROJO, Sara. (Org.).
VIVEIROS de
CASTRO, Eduardo. Metafísicas canibais:
elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac & Naify,
2015.
Fotos: Cia Pessoal de Teatro
[1]
Queimar a casa: as origens de um
diretor. BARBA, Eugenio. Tradução de Patrícia de Mendonça: São Paulo:
Perspectiva, 2010.
[2]
“Bios significava vida. O bios do ator que penetra no mundo
interior do espectador; o bios do
espetáculo que se confronta com o logos insensato da história; o bios do teatro como rebelião e
transcendência, como presença e voz de superstições individuais, para além do
entretenimento e da arte” (BARBA, 2010).
[1]
Coletivo Contraponto, MG.
[2] O
antropólogo Eduardo Viveiros de Castro (Metafísicas
canibais: elementos para uma antropologia pós-estrutural. São Paulo: Cosac
& Naify, 2015), fala desse passado que não se deixa atualizar em um
presente, como sendo o tempo mítico-cósmico, no contexto das culturas
ameríndias.
[1]
Fernando Mencarelli lembra de duas vertentes principais: uma, a que tem por
referência o trabalho do ator sobre si, outra, o trabalho do ator sobre a cena.
Cf. MENCARELLI, Fernando Antonio. Performance, trabalho sobre si e canções
rituais brasileiras. In: CARREIRA, André Luiz Antunes N.; QUEIROZ, Fernando
Antonio Pinheiro de VILLAR de; GRAMMONT; RAVETTI, Graciela; ROJO, Sara. (Org.).
[2]
Do Outro Lado. Publicação da
Representação Oficial Portuguesa/Quadrienal de Praga, 2011. Vários autores.
Direção-Geral das Artes, Ministério da Cultura de Portugal, maio de 2011.
[3]
Cidade dos outros. Direção: Amauri
Tangará. Dramaturgia: Juliana Capilé. Atuação: Juliana Capilé e Tatiana
Horevicht. Música Cênica: Ebinho Cardoso. Cenotécnico e Iluminador: Paulo
Kruckowsk. Montador: Genival Soares. Confecção de figurino e adereços: Dila
Kallil. Cuiabá, 2010.
[1] “Quando
alguém falava comigo, o que estava dizendo? Era uma ameaça, uma oração, uma
ordem, um elogio?” (BARBA, 2010, p. 78).
[2]
Todas as citações de Eugenio Barba e de João Brites que não tiverem referências
em livros e textos, foram retiradas do contexto tanto formal (palestras) quanto
informal (conversas) do encontro. Muitas dessas falas foram gravadas de memória,
outras em anotações rápidas, muitas vezes incompletas. Portanto, elas podem não
corresponder ao que foi propriamente dito.
[3]
Em primeira instância, utilizo o termo acontecimento
para falar da cena, distinto do conceito de obra (artefato), por envolver a
singularidade espaço-temporal que se dá numa relação presencial entre os corpos
(FISCHER-LICHTE, 2011), numa esfera que é a do convívio (DUBBATI, 2007,
2010). Em segunda instância, refiro-me
ao conceito de acontecimento em
Gilles Deleuze (1974). Não diz de um fato empírico (um acidente de carro, por
exemplo), mas de um acontecimento – uma síntese disjuntiva – entre mundo e
linguagem.
[4]
Guardadas as diferenças, e somente a título de exemplo, essa busca de rigor
para potencializar a revolta pode ser vista no Brasil, nos anos de 1970, entre
outros traçados, na entrada do coreógrafo e bailarino estadunidense, Lennie
Dalle no grupo de artistas de dança e teatro, Dizi Croquettes. (Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Dzi_Croquettes
). Os artistas vinham de trajetórias muitas distintas, mas praticamente todos
eles estavam incitados a cantar, dançar e atuar. Lennie implantou, além dos
ensaios, o treino em sessões exaustivas e rigorosas de técnicas de dança. O que
proporcionou, paradoxalmente, o adensamento da revolta existencial-política
daqueles corpos. Pelo menos no tempo em que conseguiram se manter juntos,
quando outros fatores levaram à dissolução do grupo e á dissipação das próprias
forças. Veja o belo documentário sobre o grupo em https://www.youtube.com/watch?v=rgy8fXEqw98
[1]
Criador, pesquisador e professor de Teatro. Formado em Filosofia (UFMG), com
doutorado em Artes (UFMG). Participa do Coletivo Contraponto – MG.